Das coisas que mais têm me proporcionado prazer ultimamente aponto o “meu puxadinho”.
O puxadinho é uma espécie de anexo que idealizei – e construí – para ser exclusivamente meu. Fica no último andar de onde minhas filhas moram, que é na mesma alameda, do mesmíssimo condomínio, há apenas alguns passos de distância de mim. É a minha cara – e o coração, a alma, as lembranças, as histórias, a existência inteira. Onde preservo boa parte do que vivi até aqui: cheiros, sabores, fotos, documentos, recordações de viagens, presentes de amigos, livros, coleções, pelúcias.
Eu sou assim, não sei se você sabia, guardo bobagens: rolha do espumante que bebi numa ocasião especial, tickets do show da Broadway que fui, primeira roupinha que as crianças usaram, bilhetes de amor. Não sou acumuladora, pelo contrário, quando enjoo logo passo adiante. Para estar no status de artigo colecionável tem que ter valor. Financeiro não, significação, memória afetiva. Precisa ser reminiscência de um instante inesquecível – e então preservo qualquer treco na esperança de que, ao tocar naquilo, eu seja automaticamente remetida a um momento feliz do passado. Funciona.
Uma vez eu vi um filme onde o pai do protagonista tinha um “quarto do pelado”. Era como ele chamava um local só dele. Ali cuidava do aquário, ouvia música e ficava peladão – porque gostava, porque sim. E não que é ninguém pudesse entrar, podia. Era preciso apenas respeitar o espaço.
A minha vida, e a de muitas mulheres da minha idade, era igualzinha: nascíamos, morávamos com pais e irmãos. Depois, casávamos e formávamos um lar com marido e filhos. No meio do caminho, eu me divorciei, mas continuei com as meninas. Recentemente casei de novo. O resultado é que nunca morei sozinha (nem sei se já tive essa vontade).
De repente, a uma certa altura, eu me dei conta de que precisava ter mais do que umas portas de armário, umas gavetas e um lado da cama. E, por favor, não me acene com noites de insônia tentando explicar a razão. Sei lá. Coerência, desejo de intimidade comigo mesma, autoconhecimento? Talvez, talvez.
Habito em vários cômodos – alguns na casa que moro (que não é minha), outros na casa que possuo (e não moro). Coloco sempre um toque particular em cada ambiente: uma ou outra peça solta, misturada com a mobília e os gostos de todos os moradores e agregados. Natural. Secretamente, no entanto, eu queria era juntar os pedaços espalhados num canto único para o tal quebra-cabeças interno fazer sentido. Com a impressão de que eu tinha tudo, mas não tinha nada, desejava um lugar todinho meu – tipo um ateliê, uma casa na árvore, um puxadinho – devidamente decorado, organizado e arrumado.
Diferente do homem que amava ficar nu, ando me sentindo bem agasalhadinha. Ou será que embora totalmente despido ele também estivesse aquecido como eu?
Kátia Galvão em 50etcetera